Seguia meu caminho já cansado e meio desconfortável na luz confusa do
horário, quando me lembrei duns versos antigos que havia lido minha avó, quando
chegávamos à sua casa, nessas horas de fim de tarde:
“Enquanto
passo na estrada,
Através
desses lugares perdidos,
Passam
esses lugares também,
Através
dos tempos e de mim,
Avançando
com as memórias do dia,
Rumo a
seu fim.
Que se
inicia a hora da troca das luzes,
É o
lusco-fusco que toma as passagens,
Deitando
sobre tudo um filme de transição.
Descerra
seu véu de confusão e incerteza,
Em seu
auge coroado pelas luzes da noite,
Antes da
luz do dia terminar de partir.
Passo
eu, passa a estrada e o dia também,
Sobe lá
na serra uma névoa fria e pesada,
Anuncia
o canto distante da coruja,
Adeus,
adeus. ”
Sim, bem satisfeito posso dizer-lhes, que sou o senhor de todas
essas terras, até onde a vista alcança e ainda além. Quase como um rei, diria
um lisonjeiro amigo meus, às vezes cruzo essas trilhas, apenas para admirar sua
extensão, o que infelizmente não era o caso nesse dia, em que tomava para mim
uma missão.
Quando a noite veio, assim num súbito, acelerei até a porta do
estalajadeiro, que recebia os viajantes e cuidava de minhas terras no topo da Serra dos Nunca Mais, para ter repouso
seguro e cumprir meu propósito junto a ele e os seus.
Com efeito, o anfitrião recebeu-me caloroso, que há muito não
tinha minha presença por ali. Chamou as crianças e a esposa, que me vissem e
cumprimentassem. Pôs-se a senhora à cozinha e ele me veio com dois cálices à
mão, pediu-me que sentasse na cadeira alta ao lado da lareira e contasse por
onde andei, enquanto sua Dona preparava-nos uma sorte de porções de pães e
caças da região.
Em meio às aventuras e trivialidades, que achei por bem
contar-lhes, foram entretendo-se, até que senti estarem descontraídos e prontos
para que pudesse dar-lhes a notícia do caso
dos cães-de-chifres.
_Assim como outros em minhas terras, vocês consideram essas
feras, apenas lenda remota, fruto da imaginação dos ignorantes. Esclareço-lhes
que são sim, uma espécie rara de cão-do-mato. Eu mesmo só vi um desses quando
ainda era um adolescente, mas fiquei para sempre impressionado com seu tamanho,
pelagem rústica e opaca, nuns tons de enferrujado, os dentes saltados das
mandíbulas, compridos e muito afiados, mas sobretudo, com os chifres no topo do
crânio.
Não que fossem ameaçadores em si, como os dentes, não. De sua
base, ainda coberta com os pelos mais finos da cabeça, até a ponta, mediam
pouco menos de um palmo e eram curvos para trás, rentes ao crânio, sendo de
fato, muito raramente usados para ataque ou defesa. Mas aqueles cornos, de cor
de grafite, na cabeça de um cão-do-mato daquele tamanho, causavam em qualquer
um, grande espanto. Lembro bem de minha mãe, desenhando com a mão sobre si o
sinal da cruz, rápida e repetidas vezes, murmurando alguma prece, que Deus nos
protegesse.
Nessa hora o casal ouvia-me muito atento e de olhos arregalados,
as crianças, que já deveriam estar em suas camas, esgueiravam-se no escuro,
cheias de medo, mas de olhos brilhantes, ávidas por continuar a ouvir.
Segui esclarecendo que, naquela primeira vez que tivera contato
com esse tipo de animal, meu tio-avô, Dr. Augusto, explicara à toda família:
_Essa aí que foi morta pelo Dimas é uma fêmea jovem, mas estou
certo de que pariu há poucos dias. Se outra fêmea da matilha os adotar, inda
podem atormentar esses fazendeiros mais isolados nos pés das serras. Costumam
ocupar cavernas nos topos dos penhascos para dormir e procriar. Com seu porte,
força e hábitos noturnos, descem à noite para os pastos e tem preferência pelas
ovelhas e cordeiros, que abatem com facilidade, diferentes de cães-do-mato,
aqueles comuns, que no máximo, dão conta de caçar umas galinhas.
Exatamente por isso seu número estava muito reduzido nas regiões
das fazendas dos pés-das-serras, onde os caçadores os haviam perseguido e quase
exterminado. Há muito já não se via um, como aquela fêmea, caçando em pasto de
criação. Então, desde esse episódio antigo, nunca mais se ouvira um relato
sobre um cão-de-chifres.
Ergui meus olhos que fitavam o fogo enquanto falava, dei um
longo suspiro, a senhora estendeu-me um copo d´água, sorvi uns goles, acenei
com a cabeça e prossegui.
_Acontece que há dois dias, um campeonato de caça motivado pela
rivalidade entre os Pontes e os Oliveiras, teve início com meu consentimento.
_Essas famílias arrendam as terras do Senhor, do outro lado dos Três
Rios, disse à sua senhora, o estalajadeiro.
_Isso mesmo. Percebi tardiamente que deveria ter intervido, mas sem
que me desse conta, eles empolgados em deitar à mesa de seu Senhor e Juiz, um
número maior e variedades vistosas de caça, meteram-se a subir a Serra do
Arrepio, além da zona de caça.
Para azar do jovem, filho mais novo dos Pontes, Josué, creio eu,
era ele quem ia mais avançado e deu de cara com a matilha à boca de sua
caverna. Não teve tempo de recobrar-se do espanto e do arrepio que subiu-lhe,
da espinha à cabeça, ao vê-los alinhados, rosnando raivosos de olhos
vermelhos...
Quando Pedro Pontes, seu irmão mais velho vinha chegando de
longe, viu o maior dos cães, esgueirar-se pelo lado esquerdo de seu irmão e
avançar saltando em sua orelha, arrancando-a num instante, deixando o pobre no
chão, aos berros e seguindo como um raio em direção oposta, descendo a serra,
acompanhado da matilha. Pedro ainda jurou ter acertado dois deles, ao que os
outros caçadores zombaram, pois nenhum fora tombado e não havia rastro de
sangue nenhum por onde sumiram na mata.
O caso é que, ao que tudo indica, a matilha, que devia contar
com uma dúzia de cães, deve ter seguido rumo ao pé oposto da serra, que dá na
Travessia dos Três Rios. A esses exímios nadadores, não seria grande desafio,
atravessá-los, ainda mais nessa época de seca. Logo estariam subindo a Serra dos Nunca Mais em busca de uma
nova caverna pra se abrigar e logo estariam caçando novamente.
Diante da expressão grave do pobre homem e da face de terror de
sua Dona, procurei tranqüilizá-los, garantindo que já perseguia os cães, um
grupo dos melhores caçadores e que na manhã seguinte, chegaria à estalagem
outro grupo, que partiria dali, com o objetivo de encurralar os cães em seu
caminho de subida à serra. Destaquei ainda que três deles montariam guarda na
estalagem para proteger-lhes.
Assim, um pouco mais confortados, puseram-se a deitar as crianças,
levaram-me lá em cima no quarto mais alto, que estava todo pronto para recebe-me
e deixaram-me a ouvir de lá de baixo, seu zêlo em cerrar todas as janelas e
trancar as portas.
Deitado numa cama quente e confortável, logo as imagens que vi e
contei, foram confundindo-se em minha mente e pude dormir.
Acordei assustado horas depois, como se alguém me tivesse
balançado na cama, sentei rapidamente e alerta, pude perceber pela janela, que
ainda era fim da madrugada e o dia ainda demoraria para amanhecer. Levantei-me
e desci os lances de escada, pé ante pé, na casa escura e silenciosa, rumo a
uma tênue luz que vinha da sala. Sobre a mesa escura em seu centro, encontrei
uma vela queimando, que me deixava ver um bilhete.
“Meu
Senhor,
Sinto muito que tenha tido de partir
assim, sem ao menos poder comunicar-lhe de nossa decisão. Minha esposa, que já
é fraca dos nervos, ficou por demais impressionada com a história que
contou-nos, Ainda mais ao imaginar os terríveis fatos que ainda poderiam vir a acontecer.
Implorou-me e não pude negar-lhe, que
juntássemos o essencial e partíssemos com nossas crianças para a casa de meus
pais na cidade velha, antes mesmo que as equipes de caça chegassem, jurando-me que
não poderia suportar tal tensão.
Peço-lhe que me perdoe e um dia ainda
me dê a chance de compensar-lhe essa falta, em momento de grande atribulação.”
George
e Família Gomes de Freitas
Apenas deitei o papel sobre a mesa, peguei o molho de chaves que
estava a seu lado, dirigi-me à porta e destranquei-a sem esforço.
Lá fora a lua cheia alta, não era suficiente para dispersar a
névoa da serra. Olhei para os lados e para o chão, avancei até a entrada do
pátio e pude ver pelas marcas na terra e no remexido das pedras que tinham
partido há muito pouco.
Detido em devaneios por instantes, um estalo de galhos no mato
me fez despertar e qual não foi meu espanto quando avisto, vindo da névoa da
estrada um vulto de gente. Procurei acalmar-me, convencendo-me ser um dos
caçadores muito adiantado ao grupo, mas logo pude ver pelos trajes que não se
tratava de caçador algum. À medida
que se aproximava, eu paralisado, mais espantado ficava, a reconhecer-lhe a
figura e duvidar que pudesse ser:
_Mas...tio...Doutor Augusto, o senhor...eu pensei, eu, não entendo...
_Não disponho do tempo que deseja, para todas as explicações de
que crê precisar, eu também venho cumprir uma missão.
Sua voz parecia a mesma, de tantos anos atrás, mas preenchida de
um eco, que vinha de outro lugar.
_Eu estava enganado meu filho, aquela fêmea, que mandei Dimas
matar, seus filhotes não tinham outra fêmea para cuidar-lhes, ela era a última
da matilha. Muito indefesos foram presas fáceis para os predadores da mata. Como
última adulta da raça, quando ela e seus filhotes foram mortos, os cães-de-chifres
foram para sempre extintos.
_Mas os caçadores viram a matilha, dias atrás e seus chifres...
_Sim, eu sei, eu sei... mas ouça. Quando Dimas matou aquela
cadela, foi ele quem disparou as balas que a derrubaram, mas eu era o
verdadeiro responsável. Ele mesmo perguntou-me se não a poderíamos prender e
mandar para o zoológico, tão impressionado que estava com o bicho. Eu disse
não.
A marca dessa decisão esteve comigo por anos. Por muito tempo
segui ileso, protegido através de artifícios forjados por um velho curandeiro,
que me devia muitos favores e foi fiel, mantendo os círculos fechados, mesmo
tendo partido depois de mim.
Como não houve termos de responder à minha culpa antes de
partir, e eu não deixei herdeiros, esta dívida chega até você, por ser eu irmão
de seu avô e tio do filho, seu pai. Pois agora quer chegaram a hora e o momento
certos, esta dívida é repassada a você, aqui e agora, como o único do meu sangue, que novamente abriu
as portas aos caçadores.
_Mas tio, o que está me dizendo, há testemunhas e o filho dos
Pontes ferido, foram eles, uma matilha de cães-de-chifres que eles acharam na Serra do Arrepio, eles devem estar vindo
para essas bandas, precisamos entrar, nos armar e montar guarda.
_Meu filho, agora me diga, puxe pela memória, aquela cadela que
viu deitada, morta a meus pés. Seus olhos estavam abertos e você foi quem mais
se demorou em examiná-la comigo. De que cor eram seus olhos?
_Negros, eram negros...
_E o pobre que teve sua orelha decepada, disse o que dos olhos
do cão que o feriu e de toda matilha?
_Que eram vermelhos...
_Vê os olhos vermelhos, disse apontando em redor, e pude ver que
se aproximavam rapidamente, vindos de todos os lados.
_ Os cães-de-chifres não tem olhos vermelhos...
Nenhum comentário:
Postar um comentário