26 dezembro 2012

Os Cães da Serra


















Seguia meu caminho já cansado e meio desconfortável na luz confusa do horário, quando me lembrei duns versos antigos que havia lido minha avó, quando chegávamos à sua casa, nessas horas de fim de tarde:

“Enquanto passo na estrada,
Através desses lugares perdidos,
Passam esses lugares também,
Através dos tempos e de mim,
Avançando com as memórias do dia,
Rumo a seu fim.

Que se inicia a hora da troca das luzes,
É o lusco-fusco que toma as passagens,
Deitando sobre tudo um filme de transição.

Descerra seu véu de confusão e incerteza,
Em seu auge coroado pelas luzes da noite,
Antes da luz do dia terminar de partir.

Passo eu, passa a estrada e o dia também,
Sobe lá na serra uma névoa fria e pesada,
Anuncia o canto distante da coruja,
Adeus, adeus. ”

Sim, bem satisfeito posso dizer-lhes, que sou o senhor de todas essas terras, até onde a vista alcança e ainda além. Quase como um rei, diria um lisonjeiro amigo meus, às vezes cruzo essas trilhas, apenas para admirar sua extensão, o que infelizmente não era o caso nesse dia, em que tomava para mim uma missão.

Quando a noite veio, assim num súbito, acelerei até a porta do estalajadeiro, que recebia os viajantes e cuidava de minhas terras no topo da Serra dos Nunca Mais, para ter repouso seguro e cumprir meu propósito junto a ele e os seus.

Com efeito, o anfitrião recebeu-me caloroso, que há muito não tinha minha presença por ali. Chamou as crianças e a esposa, que me vissem e cumprimentassem. Pôs-se a senhora à cozinha e ele me veio com dois cálices à mão, pediu-me que sentasse na cadeira alta ao lado da lareira e contasse por onde andei, enquanto sua Dona preparava-nos uma sorte de porções de pães e caças da região.

Em meio às aventuras e trivialidades, que achei por bem contar-lhes, foram entretendo-se, até que senti estarem descontraídos e prontos para que pudesse dar-lhes a notícia do caso dos cães-de-chifres.

_Assim como outros em minhas terras, vocês consideram essas feras, apenas lenda remota, fruto da imaginação dos ignorantes. Esclareço-lhes que são sim, uma espécie rara de cão-do-mato. Eu mesmo só vi um desses quando ainda era um adolescente, mas fiquei para sempre impressionado com seu tamanho, pelagem rústica e opaca, nuns tons de enferrujado, os dentes saltados das mandíbulas, compridos e muito afiados, mas sobretudo, com os chifres no topo do crânio.

Não que fossem ameaçadores em si, como os dentes, não. De sua base, ainda coberta com os pelos mais finos da cabeça, até a ponta, mediam pouco menos de um palmo e eram curvos para trás, rentes ao crânio, sendo de fato, muito raramente usados para ataque ou defesa. Mas aqueles cornos, de cor de grafite, na cabeça de um cão-do-mato daquele tamanho, causavam em qualquer um, grande espanto. Lembro bem de minha mãe, desenhando com a mão sobre si o sinal da cruz, rápida e repetidas vezes, murmurando alguma prece, que Deus nos protegesse.

Nessa hora o casal ouvia-me muito atento e de olhos arregalados, as crianças, que já deveriam estar em suas camas, esgueiravam-se no escuro, cheias de medo, mas de olhos brilhantes, ávidas por continuar a ouvir.

Segui esclarecendo que, naquela primeira vez que tivera contato com esse tipo de animal, meu tio-avô, Dr. Augusto, explicara à toda família:

_Essa aí que foi morta pelo Dimas é uma fêmea jovem, mas estou certo de que pariu há poucos dias. Se outra fêmea da matilha os adotar, inda podem atormentar esses fazendeiros mais isolados nos pés das serras. Costumam ocupar cavernas nos topos dos penhascos para dormir e procriar. Com seu porte, força e hábitos noturnos, descem à noite para os pastos e tem preferência pelas ovelhas e cordeiros, que abatem com facilidade, diferentes de cães-do-mato, aqueles comuns, que no máximo, dão conta de caçar umas galinhas.

Exatamente por isso seu número estava muito reduzido nas regiões das fazendas dos pés-das-serras, onde os caçadores os haviam perseguido e quase exterminado. Há muito já não se via um, como aquela fêmea, caçando em pasto de criação. Então, desde esse episódio antigo, nunca mais se ouvira um relato sobre um cão-de-chifres.

Ergui meus olhos que fitavam o fogo enquanto falava, dei um longo suspiro, a senhora estendeu-me um copo d´água, sorvi uns goles, acenei com a cabeça e prossegui.

_Acontece que há dois dias, um campeonato de caça motivado pela rivalidade entre os Pontes e os Oliveiras, teve início com meu consentimento.

_Essas famílias arrendam as terras do Senhor, do outro lado dos Três Rios, disse à sua senhora, o estalajadeiro.

_Isso mesmo. Percebi tardiamente que deveria ter intervido, mas sem que me desse conta, eles empolgados em deitar à mesa de seu Senhor e Juiz, um número maior e variedades vistosas de caça, meteram-se a subir a Serra do Arrepio, além da zona de caça.

Para azar do jovem, filho mais novo dos Pontes, Josué, creio eu, era ele quem ia mais avançado e deu de cara com a matilha à boca de sua caverna. Não teve tempo de recobrar-se do espanto e do arrepio que subiu-lhe, da espinha à cabeça, ao vê-los alinhados, rosnando raivosos de olhos vermelhos...

Quando Pedro Pontes, seu irmão mais velho vinha chegando de longe, viu o maior dos cães, esgueirar-se pelo lado esquerdo de seu irmão e avançar saltando em sua orelha, arrancando-a num instante, deixando o pobre no chão, aos berros e seguindo como um raio em direção oposta, descendo a serra, acompanhado da matilha. Pedro ainda jurou ter acertado dois deles, ao que os outros caçadores zombaram, pois nenhum fora tombado e não havia rastro de sangue nenhum por onde sumiram na mata.

O caso é que, ao que tudo indica, a matilha, que devia contar com uma dúzia de cães, deve ter seguido rumo ao pé oposto da serra, que dá na Travessia dos Três Rios. A esses exímios nadadores, não seria grande desafio, atravessá-los, ainda mais nessa época de seca. Logo estariam subindo a Serra dos Nunca Mais em busca de uma nova caverna pra se abrigar e logo estariam caçando novamente.

Diante da expressão grave do pobre homem e da face de terror de sua Dona, procurei tranqüilizá-los, garantindo que já perseguia os cães, um grupo dos melhores caçadores e que na manhã seguinte, chegaria à estalagem outro grupo, que partiria dali, com o objetivo de encurralar os cães em seu caminho de subida à serra. Destaquei ainda que três deles montariam guarda na estalagem para proteger-lhes.

Assim, um pouco mais confortados, puseram-se a deitar as crianças, levaram-me lá em cima no quarto mais alto, que estava todo pronto para recebe-me e deixaram-me a ouvir de lá de baixo, seu zêlo em cerrar todas as janelas e trancar as portas.

Deitado numa cama quente e confortável, logo as imagens que vi e contei, foram confundindo-se em minha mente e pude dormir.

Acordei assustado horas depois, como se alguém me tivesse balançado na cama, sentei rapidamente e alerta, pude perceber pela janela, que ainda era fim da madrugada e o dia ainda demoraria para amanhecer. Levantei-me e desci os lances de escada, pé ante pé, na casa escura e silenciosa, rumo a uma tênue luz que vinha da sala. Sobre a mesa escura em seu centro, encontrei uma vela queimando, que me deixava ver um bilhete.

“Meu Senhor,

         Sinto muito que tenha tido de partir assim, sem ao menos poder comunicar-lhe de nossa decisão. Minha esposa, que já é fraca dos nervos, ficou por demais impressionada com a história que contou-nos, Ainda mais ao imaginar os terríveis fatos que ainda poderiam vir a acontecer.

         Implorou-me e não pude negar-lhe, que juntássemos o essencial e partíssemos com nossas crianças para a casa de meus pais na cidade velha, antes mesmo que as equipes de caça chegassem, jurando-me que não poderia suportar tal tensão.

         Peço-lhe que me perdoe e um dia ainda me dê a chance de compensar-lhe essa falta, em momento de grande atribulação.”

                                                                   George e Família Gomes de Freitas


Apenas deitei o papel sobre a mesa, peguei o molho de chaves que estava a seu lado, dirigi-me à porta e destranquei-a sem esforço.

Lá fora a lua cheia alta, não era suficiente para dispersar a névoa da serra. Olhei para os lados e para o chão, avancei até a entrada do pátio e pude ver pelas marcas na terra e no remexido das pedras que tinham partido há muito pouco.

Detido em devaneios por instantes, um estalo de galhos no mato me fez despertar e qual não foi meu espanto quando avisto, vindo da névoa da estrada um vulto de gente. Procurei acalmar-me, convencendo-me ser um dos caçadores muito adiantado ao grupo, mas logo pude ver pelos trajes que não se tratava de caçador algum.         À medida que se aproximava, eu paralisado, mais espantado ficava, a reconhecer-lhe a figura e duvidar que pudesse ser:

            _Mas...tio...Doutor Augusto, o senhor...eu pensei, eu, não entendo...

_Não disponho do tempo que deseja, para todas as explicações de que crê precisar, eu também venho cumprir uma missão.

Sua voz parecia a mesma, de tantos anos atrás, mas preenchida de um eco, que vinha de outro lugar.

_Eu estava enganado meu filho, aquela fêmea, que mandei Dimas matar, seus filhotes não tinham outra fêmea para cuidar-lhes, ela era a última da matilha. Muito indefesos foram presas fáceis para os predadores da mata. Como última adulta da raça, quando ela e seus filhotes foram mortos, os cães-de-chifres foram para sempre extintos.

_Mas os caçadores viram a matilha, dias atrás e seus chifres...

_Sim, eu sei, eu sei... mas ouça. Quando Dimas matou aquela cadela, foi ele quem disparou as balas que a derrubaram, mas eu era o verdadeiro responsável. Ele mesmo perguntou-me se não a poderíamos prender e mandar para o zoológico, tão impressionado que estava com o bicho. Eu disse não.

A marca dessa decisão esteve comigo por anos. Por muito tempo segui ileso, protegido através de artifícios forjados por um velho curandeiro, que me devia muitos favores e foi fiel, mantendo os círculos fechados, mesmo tendo partido depois de mim.

Como não houve termos de responder à minha culpa antes de partir, e eu não deixei herdeiros, esta dívida chega até você, por ser eu irmão de seu avô e tio do filho, seu pai. Pois agora quer chegaram a hora e o momento certos, esta dívida é repassada a você, aqui e agora, como o único do meu sangue, que novamente abriu as portas aos caçadores.

_Mas tio, o que está me dizendo, há testemunhas e o filho dos Pontes ferido, foram eles, uma matilha de cães-de-chifres que eles acharam na Serra do Arrepio, eles devem estar vindo para essas bandas, precisamos entrar, nos armar e montar guarda.

_Meu filho, agora me diga, puxe pela memória, aquela cadela que viu deitada, morta a meus pés. Seus olhos estavam abertos e você foi quem mais se demorou em examiná-la comigo. De que cor eram seus olhos?

_Negros, eram negros...

_E o pobre que teve sua orelha decepada, disse o que dos olhos do cão que o feriu e de toda matilha?

_Que eram vermelhos...


_Vê os olhos vermelhos, disse apontando em redor, e pude ver que se aproximavam rapidamente, vindos de todos os lados.

_ Os cães-de-chifres não tem olhos vermelhos...



19 dezembro 2012

Na antessala




















Na última noite de domingo para segunda dormi mal, fiquei virando na cama, de um lado para o outro, como se alguém tentasse o tempo todo falar comigo e eu não quisesse ouvir. Por isso minha cabeça ficou meio congestionada, então eu queria passar o dia bem tranquilo, descansar. Daí lembrei-me da antessala do céu. Ao que tudo indica, o lugar mais tranquilo de toda a existência.

algum tempo atrás era um lugar movimentado, pois todos que estavam para entrar aos céus tinham que passar por lá. Em épocas mais agitadas, datas de grande número de ingressantes, o lugar chegava e ter algumas filas no atendimento e ouvia-se um certo burburinho, situação quase desconfortável para um lugar assim tão sóbrio e sereno.

Com o tempo, em decorrência dessas mudanças de estilo típicas da vida moderna, o volume de novos habitantes veio sofrendo lentas e graduais, mas sensíveis quedas. Somando-se isso ao aprendizado adquirido nas datas de rush, os comitês de logística e operações tomaram uma decisão quase que radical, para os padrões da casa: As recepções passaram a ocorrer diretamente nos portais de entrada. Uma vez que você cruzasse um deles, estaria em um amplo hall, com modernos guichês de atendimento, um confortável lounge com música ambiente, sofás confortáveis, naquele clima perfeito que só o céu pode oferecer, caso alguém tenha que aguardar um atendimento. Uma beleza de se ver.

A antessala do céu, por sua vez, foi destinada a um imenso e pouco movimentado depósito e estoque de suprimentos. Logo na entrada três enormes mesas baixas e bem compridas, alinhadas lado a lado, com postos para dois funcionários em cada uma das extremidades. Até elas, vindo lá do fundo da imensa sala, um par de esteiras para cada mesa, em movimento ininterrupto de ir e vir. Nos dias mais tranquilos, só um desses conjuntos dá conta de todo o movimento. Ao fundo, prateleiras tão altas quanto o imenso pé direito desse lugar, tem seus espaços divididos entre roupas de uso pessoal, cama, mesa e banho, papéis e tintas, convencionais e tecnológicos de toda sorte , além de alguns poucos produtos químicos de uso bastante restrito.

Lá atrás depois das prateleiras, quase que esquecidas por todos, ficam duas salas de recuperação e repouso. Acontece que a equipe que trabalha na ex-antessala do céu, em seus momentos de descanso, está sempre querendo passear pelos portais do céu, saber o que está acontecendo por ali, conversar com os amigos e mesmo que forem repousar, fazem isso em suas casas, ou praças dos arredores. O fato é que, sobretudo em dias muito chuvosos como foi essa segunda feira, a iluminação normalmente estourada de branco dessas salas, fica bem mais amena e aconchegante, o som baixo, grave e contínuo das esteiras, fica distante o suficiente para tornar-se um mantra e a temperatura é simplesmente ideal.
Sim, já houve quem me perguntasse sobre como obtive essas informações e eu não vi problemas em dizer:

_Os Pássaros, aqueles que me visitam à noite as vezes, guiaram-me uma vez até lá. O complicado é não ter certeza se com eles atravessei os portões de chifres ou os portões de marfim...enfim. Depois de cruzá-los e caminhar por um certo tempo num desses caminhos que não se pode bem distinguir onde fica, por parecerem apenas lugares entre lugares, o trecho meio escuro foi-se iluminando e eu estava lá às portas da antessala do céu.

Um funcionário me aguardava à porta e gesticulando pediu-me que o acompanhasse. Meio hesitante, meio encantado eu fui seguindo e entendendo que deveria ficar quieto e que ele não iria falar nada, não sei ser mudo mudo ou porque não podia falar. Caminhamos ao lado oposto das mesas e esteiras e por todas as vezes que olhei, aqueles que trabalhavam lá não desviaram a cabeça em nossa direção.

Quando chegamos às salas ao fundo, o misterioso que não falava, abriu a porta da primeira sala e me indicou que na segunda eu não deveria entrar. Deu a entender que poderia ficar à vontade e que iria se retirar. Acenei com a cabeça que sim e ele se foi. Olhei em redor e naquele todo amplo e branco, de luz aconchegante, escolhi uma das longas e acolchoadas cadeiras de descanso e estiquei meu corpo nela. Que conforto incrível, que paz, que vontade de estar lá novamente e sentir-me como naquele dia eu senti, nessa segunda-feira cansada.